quarta-feira, 21 de novembro de 2007

Un soir Boulevard Voltaire

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Mais do que um álbum, Favourite songs é um roteiro. Um mapa traçado pela mão de Vincent Delerm, que nos reconduz ao passado da chanson, confrontando esse distante legado com os trabalhos de alguns dos seus contemporâneos. No palco do La Cigale de Paris, não se cruzam apenas nomes ou referências; nele o próprio tempo descreve uma curva, dando lugar à partilha e à memória.



Memória essa que remonta aos anos 60, implícita na presença em palco de Georges Moustaki, autor, compositor e intérprete, hoje nos últimos anos da sua vida. Uma recordação distante de alguém que se fez acompanhar por Edith Piaf, e que até aos dias de hoje não mais parou de escrever e de compor. Nesta mesma noite, Georges Moustaki haveria de regressar ao palco para um tributo final do público parisiense, interpretando, ainda na companhia de Delerm, As águas de Março, num português agradavelmente imperceptível.



Num banco de jardim reúnem-se então a Delerm duas figuras. A de um renovado Renaud, nome maior da chanson na década de 70, hoje a promover o seu mais recente álbum editado pela Tôt ou Tard, pela qual assina também Delerm, e a figura de Bénabar, seguramente um dos responsáveis pelo revivalismo da obra de Brel, em França. O tema, da autoria de Renaud, chama-se Cent ans, e claro está, apresenta-nos uma personagem envelhecida, que de um banco de jardim lamenta a vida que se esgota ao ritmo de cada folha que cai. À semelhança de Godinho, também ele se rodeou de músicos jovens, assumindo desta forma um natural upgrade nas estruturas e nos arranjos dos seus temas. De uma escrita bastante cínica e interpretação expressiva, Renaud assiste hoje à sua redescoberta por um público francês mais jovem e entusiasta.



Pisam de seguida o palco Alain Chamfort e Cali. Segue-se então a revisita a Rose Kennedy, álbum maior da chanson actual, primeiro trabalho de Benjamin Biolay, em palco pela primeira vez, na companhia do outro nome que com ele ombreia, numa prolífera criação músical que nos tem oferecido, em tão poucos anos, faixas como Les cerfs volants. Cruzam-se as duas vozes mais emblemáticas da sua geração. E por momentos esquecemos outros trabalhos como Négatif, Home e Trash yé yé, face à injustiça de escolher apenas uma faixa da vasta obra de Biolay.

Love is a traveller on the river of no return...




E após o reencontro com a actriz Irène Jacob, chega um verdadeiro actor, autor e performer, de seu nome Phillipe Katerine. Segurando um frango cuidadosamente depenado, cozinhado e etiquetado, chama a si a interpretação exclusiva de Poulet nº 728120, uma ironia tremenda ao frio consumismo do nosso tempo, no qual alguém estranhamente se apaixona por um frango que lhe é vendido numa grande superfície, um frango indiferenciado, apenas um número entre tantos outros.

Mais tarde, entra em palco a única voz não francófona. Do alto do seu metro e sessenta, Neil Hannon (ou melhor, Nil Hánon) denuncia a sua extrema dificuldade em cantar em francês. Curiosamente, o poema que ambos interpretam, intitulado Favourite song, prende-se exactamente com tudo o que se perde na tradução, tornando ainda mais embaraçosos os repetidos erros de Neil Hannon, que não se coíbe a por várias vezes se lamentar com um muito britânico: Shit!



J'ai ecouté toute ce chanson française
Mais je ne savais pas ce qu'est une Javanaise
Un Poinçonneur de lilas... Ça veux dire quoi?

Studied the booklet in search for a song
Made up a meaning for every line
A four letter word... L.O.V.E.

Une poupée de cire... Qu'es-ce que ça voulait dire?



Muitos outros nomes passam pelo palco do La Cigalle de Paris (Mathieu Boogaerts, Helena Noguerra, Franck Monnet, Jeanne Cherhal e Albin de la Simone), mas é o final da noite que encerra o momento mais vibrante deste álbum. Nele toda a dimensão cinematográfica das composições de Delerm é revista, ao ser convocada a figura de Alain Souchon para juntos interpretarem Y a d'la rumba dans l'air. Este último, um dos nomes maiores da música francesa, dividiu sempre este percurso com o cinema, tendo sido o responsável pela música de filmes de François Truffaut, e protagonizado mesmo algumas personagens, como em L'amour en fuite. A influência de Alain Souchon na obra de Delerm é inegável, sendo que as composições deste último são também elas uma porta de entrada para a descoberta de Alain Souchon.

Ao longo de todo o álbum, porém, um nome permanece em palco. Ao seu piano, rodeado do genial trompetista Ibrahim Maalouf, de um grande percussionista chamado Nicolas Mathuriau, e de outros músicos de assinalável engenho, Vincent Delerm prova hoje ser um nome aglutinador e determinante para a música francesa. Um nome que certamente daqui a muitos anos pertencerá à memória colectiva de todo um público francófono, que o tributará novamente no La Cigalle.


Metro realizado por Pedro Sousa e Carla Lopes



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